sábado, abril 18

SANTA RITA DA FLORESTA



“Caraca, Santa Rita é bem longe! Mais que Audax... Onde vocês estão?

a) Teresópolis, RJ
b) Além Paraíba, MG
c) Já chegaram”


Bem que eu estranhei: quando contei para Letrado que ia para Santa Rita da Floresta pedalando, a 230 km de casa e com quatro serras no meio do caminho, ele não esboçou nenhuma reação.

Só no dia seguinte é que se deu conta do percurso, já pela hora do almoço, e me passou o torpedo para saber a que altura estávamos. Cicloviagem de luxo, essa: havia um esquadrão de pessoas nos monitorando e ligando o tempo inteiro.

Nesse momento, eu, Bob Filho, The Monster e Antônio tiritávamos de frio e almoçávamos em uma birosca cor-de-rosa na beira da estrada, enquanto o vira-lata aos nossos pés ia ficando com os ossos.

Eram 14h e estávamos uns 10km depois do Mirante do Soberbo, no alto da Serra de Teresópolis. Apenas 110 km do caminho percorrido, ainda nos restava 120 km a cumprir. A jornada começou cedo: 5h30 saímos eu e The Monster de Copacabana, em direção à Av. Brasil.

Na Casa do Alemão (Rodovia Washington Luís) tomei meu segundo café da manhã. Bob Filho e Antônio nos esperavam lá. Seguimos solitários, até que o pneu de Antônio resolve furar. Pronto. Foi o que bastou para que um esquadrão de ciclistas passasse por nós. Era um pelotão atrás do outro, tanto de um lado da via, como do lado oposto.



Voltamos a pedalar e os ciclistas sumiram. Não surgiu mais nenhum, até que em Parada Modelo paramos para o meu terceiro café da manhã e mais pelotões tornaram a passar por nós. Que coisa mais bizarra.

The Monster era o único que estava com bagagem. Na metade da serra, um carro espera por nós: comitê de recepção de Marcela & Cia com isotônicos para os ‘meninos’ e Guaraviton exclusivo para mim.

Desovamos no carro a pesada mochila de The Monster e as outras coisas que julgamos desnecessárias: uns bagulhos que estavam amarrados na bike de Bob Filho e nossos Anoraks, já que o sol subindo a serra estava de rachar côco. Mas nos arrependeríamos amargamente depois...

No final da serra, Bob Filho – que ia na frente – começa a ficar para trás. Subiu rápido demais, queimou muita energia. Com o tempo ele aprende, afinal era o ‘caçulinha’ do grupo: apenas 15 anos. Já no fim, não dá para não rir de seus impropérios e gritos, esbravejando contra a bendita serra.



No Mirante do Soberbo, pausa para fotos, caldo de cana e descobrir o porquê do desespero de Bob Filho: era sua 1ª subida da Serra de Terê, assim como eu. Mas a diferença é que ele havia dito que era a 4ª vez que ia a Santa Rita da Floresta pedalando. Não entendi o paradoxo. “Ah, das outras vezes meu pai me deixou aqui no alto da serra”. Tudo explicado depois de alguns cascudos no pentelho, seguimos adiante.

Uns 10 km à frente minha bexiga pediu para parar, pelo-amor-da-minha-santinha-guardadora-das-ciclistas-de-speed. O primeiro ‘lugar’ avistado foi a tal birosca cor-de-rosa. Eu e The Monster encarquilhados e com juntas enrijecidas, ficamos no sol para esquentar o esqueleto. Ali já desconfiava que iria passar maus bocados: a temperatura caía assustadoramente, mesmo no sol tremíamos de frio.



Logo à frente, mais um carro amigo passa e nos abastece de água, mel em sachês e mariolas. Duas horas depois, o ciclo – o da bike, não o meu – começa a dar mostras de quem tem algo errado: minha velocidade havia caído muito. Paramos um pouco e ficamos esparramados no acostamento, tomando mel, bebendo água e comendo mariolas.

O lugar à nossa volta era de tirar o fôlego: muito verde, árvores, parecia um pequeno bosque. Já não havia sol na estrada e fazia frio, muito frio. Subimos, subimos, subimos e subimos a antepenúltima serra, a Serra do Capim. Ainda havia mais duas pela frente.

Já caía a noite e The Monster ficou sem água, e pior, sem Tampico. Paramos em um posto para reabastecer. Comi amendoim com Red Bull, mistura levanta-defunto. Um homem com olhos brilhando, igual criança quando ganha bicicleta no Natal, se aproxima de nós:

- “Vocês estão vindo de onde?
- Do Rio.
- Ah, sim, mas vocês vêm de onde agora?
- Do Rio.
- Mas vocês estão vindo pedalando de onde?
- Do Rio”.


Ele nos conta que é de Niterói e que também é ciclista. Agora mora por ali e sempre treina na estrada. Faz questão de nos mostrar sua bike, guardada no carro.

O ciclista-de-carro nos deu dicas valiosas. Explicou a Antônio que lá pelo km 38 acabaria nosso suplício, ou melhor, as subidas. E a estrada tenderia a descer até Além Paraíba. Só queríamos saber é de chegar até Além Paraíba. Depois, ainda nos restaria cerca de 25 km até Santa Rita da Floresta, sendo os últimos 5km finais uma serra. Mas naquela hora nem queríamos pensar nisso. Tudo por partes.



Escureceu e The Monster se deu conta que deixou seus apetrechos luminosos na mochila desovada lá no carro, ainda na Serra de Teresópolis. O breu era tanto que mesmo com ele ao nosso lado não conseguíamos saber onde estava. Aí resolvi usar o LCPV, Localizador de Ciclistas Por Voz. Eu ia chamando: “Manel?”. E ele: “Eu!”. Pronto, rapidinho descobria cadê Manel.

Quando vimos a placa do km 38, gritamos: Uhuuuuuu! A estrada ia começar a aliviar para o nosso lado. E começaram as descidas. Bob Filho avisou: em algum lugar da pista havia um ovo. Ele só sabia falar “Cuidado com o ovo, cuidado com o ovo”. Se passássemos pela lombada-desnível-ovo em alta velocidade, a chance de voarmos longe era grande.



Organizamos-nos em uma formação-padrão até Além Paraíba: Bob Filho na frente, abrindo o minhocão para procurar o ovo; eu colada na roda dele, iluminando mais ainda o caminho (meu farol estava bem forte); The Monster colado na minha roda aproveitando meu farol também, pois estava sem luz; Antônio colado na roda de The Monster, para fechar o minhocão com seu pisca e avisar quando viesse carro, que voltaríamos ao acostamento.

E seguimos descendo a 55 km/h, o que não é tanto assim, mas no breu completo com visibilidade de um metro, ah é bastante. Só conseguíamos ver a roda da bike da frente e mais nada. E uma confiança incondicional no companheiro da frente.

A adrenalina e o frio congelavam nossas mãos, e de repente Manel some. Caiu, não sei como, não sei onde, não dava para ver nada! Depois de muita insistência, nos deixou jogar água nos machucados e aproveitei a parada para me embrenhar no mato e fazer pipi. Antônio me mandou ficar tranqüila: “nem que a gente quisesse... não dá para enxergar nada mesmo”.

A tensão de descer no mais completo breu era insuportável. Eu mal piscava, o olho lacrimejava de tanto ficar aberto, não sentia mais mãos e pés, do frio e das câimbras. Depois de 25 km assim, começamos a contagem regressiva até Além Paraíba: 13 km, 12 km, 11 km, 10 km... Até que chegou na placa do km 4 e avistamos os primeiros sinais de civilização. Foi instintivo, gritamos todos juntos, igual crianças: “olha, luz, luz!”.

Chegamos a um cruzamento e Bob Filho dispara na frente, afoito por parar logo. Paramos na primeira lanchonete feiosa de beira de estrada que vimos, congelando de frio e semi-mortos. Só pensávamos em jantar. Aquela altura, no limite de municípios Carmo (RJ) – Além Paraíba (MG), eu já estava com 200 km rodados, quer dizer, pedalados.

Pelo celular, parte do grupo que tinha ido de carro e já estava na fazenda em Santa Rita da Floresta, nos avisa que está indo ao nosso encontro. Mais quatro bicicletas juntam-se aos quatro ciclistas moribundos, que de tão cansados nem comiam direito.

Bob Filho e eu nos entreolhamos. Depois de alguns instantes, ele sussurra em tom de desespero o que acabamos de conversar por telepatia: “Só bicicleta... Ninguém veio de carro de apoio!”.

Enquanto o moleque cochila na mesa, dou bocejos de sono e peço um café. Estava seriamente preocupada. Sabia que The Monster e Antônio completariam, mas tinha dúvidas quanto a nós dois. E ficamos mais tensos ainda por nossos companheiros chegarem de bicicleta ao nosso encontro, sem nenhum carro. Eram mais de 22h. Muito cansados, eu e Bob achando que não ia dar para fazer os 25 km finais e a última serra, de 5 km.

Além do apoio moral, o grupo que chegou nos emprestou algo para vestir. Consegui com Márcio uma capa plástica transparente e fiquei igual um air-bag. Pelo menos dava para reter um pouco do calor do corpo, naquela friaca violenta.

Voltar a pedalar foi penoso. Estávamos enrijecidos de tanto frio e esforço. O primeiro trecho inicial, de descida, aumentou o frio e o sofrimento. The Monster foi ao meu lado, tentando me tranqüilizar, sempre falando: “sobe devagar, bem devagar”. E logo a estradinha escura começou a subir, e o corpo foi esquentando.

Esquentando, esquentando, esquentando, até que pegou no tranco e a speed mostrou que não me deixa na mão, nem nas horas mais ingratas. Disparei, peguei o ritmo novamente e como não conseguíamos enxergar o que vinha à frente, fomos subindo sem nos preocupar com altitude.

Passo por Bob, que desceu e estava empurrando um pouco a magrela, já sem forças. Mas pouco depois voltou a pedalar. Passo por Márcio que também empurrava, e me junto a The Monster e Antônio, os dois sempre na frente de todos, sem deixar cair o ritmo.

Perguntei a Manel, como fiz em todas as outras subidas, se a gente ia subir até o céu. Mas aí me lembrei do Ed Motta, e subimos o resto da serrinha cantando para driblar o cansaço: “Manoel, foi pro céu / Manoeeeeeel, foi pro céu”.

Nosso líder Antônio nos avisa que no alto da próxima subida já é a entrada para Santa Rita da Floresta. Então resolvi pegá-los de surpresa: dei um sprint e passei em disparada.

Antônio: “Ué, quem está vindo aqui atrás tão rápido?”
Manel, The Monster: “É Thais”
Antônio: “Não pode ser, não é a Thais”
Manel, The Monster: “É Thais, sim”
Antônio: “Não é a Thais, não".
Manel, The Monster: “É Thais, sim”
Antônio: "Ih, é a Thais, sim! Vamos atrás dela”

Eu, Antônio e The Monster paramos na entrada de Santa Rita comigo gritando “Cheguei primeiro, cheguei primeiro”. Eu e The Monster fomos para o mato, para um pipi stop. Bob Filho chega um pouco depois e ganhamos parabéns por completar nossos primeiros 200 km. Na realidade, 230km. E ficamos esperando o resto do pessoal – que foi nos resgatar em Além Paraíba – chegar.

As fotos na placa de Santa Rita foram apressadas. Eu e Antônio desesperados de frio, entramos na cidadezinha e paramos na primeira birosca que vimos. Não tinha cachaça, e o dono do bar serviu dois conhaques e bolinhas de queijo quentinhas para dois ciclistas mendigos. Compadecido do nosso estado, nem nos deixou pagar nada.

Aí começou a estrada de terra. O povo foi na frente, ansioso por chegar. Fui em slow motion: aquele breu com pedras, lama e areia era um desafio e tanto para uma recém-speedeira.

Na metade do caminho, de uns 4 km, desisti de pedalar. Desmontei e fui caminhando pela estrada de terra, olhando aquele céu estrelado. Manel The Monster fez o mesmo, assim como Bob Pai e Antônio, que cortou o silêncio: “Viemos juntos até aqui, chegaremos juntos”. E seguimos empurrando as bikes até a entrada da fazenda, em Santa Rita da Floresta.



Havia sido um dia de muitas subidas. Mas eu ainda subiria muito mais. Com eles, eu subiria até o céu. Com ou sem Ed Motta.

3 comentários:

  1. Caramba Thais, você tá levando a sério mesmo isso... rsrs

    ... mas pra ser sincero, bem que eu fico invejando um ciclista de verdade como você.

    Muito legal os seus relatos de pedal.

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  2. Thaís, parabéns pelo "brogue". hehe Eu iniciei o meu agora, pois a minha paixão por bicicletas é muito recente. Espero ter tantas histórias pra contar como vc tem.

    Beijos!

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  3. Ufa! Que aventura!
    Parabéns pela conquista.
    Força no pedal.

    Smael.

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